A incrível história do gato Flamengo, que o Brasil planejava lançar ao espaço em 1958
Todos já ouviram falar na cadelinha Laika, o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Ela conquistou fama internacional quando viajou a bordo da nave soviética Sputnik 2, em 1957. Uma passagem bem menos conhecida da história dos animais no espaço envolve um gato brasileiro chamado Flamengo. O bichano estampou manchetes de vários jornais do mundo quando um militar do Exército do Brasil anunciou que ele seria enviado em um foguete para fora do nosso planeta, em 1958.
O Coronel Manoel dos Santos Lage, professor da Escola Técnica do Exército (ETE), foi um dos pioneiros nas pesquisas sobre foguetes no Brasil, começando a atuar na área no final da década de 1940, quando ainda era um aluno da instituição. Enviado aos Estados Unidos para aperfeiçoar seus conhecimentos, ele estudou temas como balística de engenhos autopropulsados, termodinâmica e engenharia de fluidos na Universidade de Michigan. De volta ao Brasil, usou sua experiência para atuar em uma dezena de projetos de foguetes.
No final de 1958, Lage liderou seu projeto mais ambicioso, o Foguete Sonda I BD 360, que ficaria mais conhecido como "Gato Félix". Junto com um grupo de oficiais, ele propôs ao comando da ETE a construção de um foguete capaz de levar uma carga útil de 30 quilos a uma altitude de 120 km. O projeto faria com que o Brasil figurasse no seleto grupo de países detentores de tecnologia espacial. Dentre os vários equipamentos, o Sonda I levaria o primeiro ser vivo da América Latina ao espaço: em uma ogiva transparente seria abrigado um gato (dando origem ao apelido do projeto).
Jornal Última Hora, 18 de dezembro de 1958
A edição de 25 de outubro de 1958 do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, trazia a notícia: "Foguete-sonda do Brasil (com um gato a bordo) vai pesquisar raios cósmicos". A reportagem informava que um gato viajaria em um compartimento isolado do dispositivo, com oxigênio suficiente para duas horas de vida. "O animal será dotado de um aparelho transmissor, em forma de colete, e as variações de pressão serão captadas em terra por um receptor que permanecerá em contato com estações internas do foguete", dizia o texto.
Nos meses seguintes, a história deu o que falar. A iminente ida de um gato brasileiro ao espaço ganhou uma grande cobertura da imprensa. O bichano em questão se chamava Flamengo e pertencia às filhas do Coronel Lage, Helly, de 15 anos, e Suelena, de 21 anos. A notícia deixou muita gente chocada. Em dezembro daquele ano, entidades protetoras dos animais questionaram o envio do animalzinho ao espaço. A embaixada brasileira em Londres também começou a receber inúmeras cartas de ingleses indignados com a experiência. "Todas pedem ao embaixador brasileiro que use de sua influência junto ao seu governo para poupar ao pobre animal sofrimentos inúteis", dizia a Última Hora.
Além da Inglaterra, a história também repercutiu nos Estados Unidos. O jornal The Wilson Daily Times, da Carolina do Norte, estampou em sua capa uma foto do gato dentro do foguete. "Lage espera que o gato volte à Terra com segurança, já que é o animal de estimação de suas duas filhas", dizia o texto. No Brasil, a imprensa continuava a fazer a festa. "O gato voltará vivo!", estampava outra capa da Última Hora. "Amarelo e com listras brancas, o gato 'Flamengo', que pertence às próprias filhas do Coronel Manuel dos Santos Lage, Diretor do Curso de Armamento da Escola Técnica do Exército, voltará vivo de sua viagem de 120 quilômetros pelo espaço" afirmava a notícia, que ainda informava sobre o adiamento da missão para janeiro de 1959.
Jornal The Wilson Daily Times, dos Estados Unidos
A essa altura, Flamengo virou uma celebridade. Em sua coluna "Personalidades", o jornal Correio da Manhã informava que o bichano passaria o Natal preso em um engradado para não fugir. A nota afirmava ainda que o gato não ganharia nenhum presente. "É possível que coma algumas frutas natalinas, mas o que ele gosta mesmo é de leite". Na revista O Mundo Ilustrado, uma foto de Flamengo no colo de uma das filhas de Lage aparecia no topo de uma página que também trazia uma nota sobre a apresentação da cantora lírica Maria Callas em Paris.
Ao contrário do previsto, Flamengo não foi ao espaço em janeiro de 1959. Nos meses seguintes, a missão foi constantemente adiada devido a inúmeros problemas técnicos. Lage teve até mesmo que desmentir um boato que dizia que o foguete havia explodido durante um teste. O lançamento acabou sendo remarcado para maio daquele ano, mas a partir daí a história começa a desaparecer das manchetes. A missão foi encerrada sem muito alarde. O que teria acontecido?
"Não se sabe ao certo o que ocorreu no final do projeto do Foguete Sonda I, mas talvez o imediatismo da imprensa e as manifestações de alguns oficiais tenham colocado fim ao sonho do Coronel Manoel dos Santos Lage", diz Dawson Izola no livro "História dos Foguetes no Brasil". Em 1960, a equipe de Lage foi desmantelada. No ano seguinte, o coronel foi transferido para a reserva como general de brigada. Especula-se que Lage tenha embarcado no sensacionalismo da imprensa, o que provocou ciúmes de seus colegas. Uma matéria da Folha de S.Paulo de agosto de 1960 aborda essa questão. "O excessivo sensacionalismo criado, porém, em torno do que se pretendia fazer e, sobretudo, a falta de objetividade nas informações prejudicaram os planos". A matéria diz ainda que o projeto do foguete-sonda prosseguiu de forma sigilosa.
Nos anos seguintes, o projeto virou motivo de piada e o gato Flamengo desapareceu das páginas dos jornais brasileiros. O primeiro felino no espaço acabou sendo a gata Félicette, enviada por uma missão francesa em 1963.
Jornal Correio da Manhã de 21 de dezembro de 1958
Revista O Mundo Ilustrado, 1958
Fonte e Imagens: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional